A virtude da solidariedade

11/02/2011 10:28

 

Dadas as circunstâncias especiais no momento da sua divulgação, obteve escassa repercussão, no Brasil, a importante Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”, “A Solicitude Social da Igreja”. Com data de 30 de dezembro de 1987, somente veio a público no dia 19 de fevereiro de 1988. Na oportunidade, as atenções do País estavam voltadas para a calamidade das inundações, aqui e em outras regiões, quando acirra-se a tensão entre Executivo e Legislativo a propósito do mandato presidencial, da forma de Governo, das definições de direitos sociais e de outros assuntos polêmicos.

O objetivo do documento foi celebrar o 20º aniversário da Encíclica “Populorum Progressio”, do Papa Paulo VI. Nas 105 páginas da edição em português da Polyglotta Vaticana, do começo ao fim, o Papa João Paulo II reafirmou ensinamentos de seu Predecessor e os atualizou à realidade de nossos dias. Está, assim, na esteira dos extraordinários pronunciamentos sobre a questão social, que tiveram em Leão XIII, com a “Rerum Novarum”, seu grande iniciador nos tempos modernos.

A maior preocupação de Paulo VI, com sua encíclica, foi promover o desenvolvimento e reduzir o hiato entre povos desenvolvidos e subdesenvolvidos. Entretanto, a situação, hoje, é pior que dezenas de anos atrás. A distância aumentou e apareceu o chamado “Quarto Mundo”, não obstante alguns avanços registrados na “Sollicitudo Rei Socialis”.

Uma das causas da deterioração consiste no fato de a mensagem central da “Populorum Progressio” não ter sido entendida ou devidamente acatada em suas diretrizes, que enfatizavam o caráter ético do problema. Este não é apenas de ordem econômica, mas é fundamentalmente uma questão de solidariedade internacional. Infelizmente, esse aspecto foi desconhecido. E nem mesmo as medidas concretas sugeridas pelo Santo Padre obtiveram o sucesso esperado como, por exemplo, a criação de um fundo com recursos retirados de uma redução da escalada armamentista. Hoje, contudo, há sinais de que o homem começa a perceber a necessidade dessa proposta e de uma atenção mais séria ao agravamento da situação social dos povos. A “Sollicitudo Rei Socialis” chegara na hora certa, no momento oportuno.

Por quê? Além de contrariarem a Moral cristã, são imprevisíveis os efeitos do alargamento “do fosso entre a área do chamado Norte desenvolvido e a do Sul em vias de desenvolvimento”. Essas desigualdades, que ferem o Evangelho, põem em perigo a própria ordem social. Existem no interior de países ricos e, “nos países menos desenvolvidos, também se vêem, não raro, manifestações de egoísmo e de ostentação de riqueza tão desconcertantes quanto escandalosas” (nº 14). Acresce que tal diferença social não está estacionária, mas denota uma “velocidade de aceleração”. Essa anomalia se revela não só no campo econômico-social como no cultural e atinge outras formas de exploração e de opressão.

A triste realidade é, “pelo menos em parte, o resultado de uma concepção demasiado limitada, ou seja, predominantemente econômica do desenvolvimento” (nº 15). A interdependência vigente no mundo, fragmentado em vários patamares de progresso, sem fundamento ético, acarreta consequências funestas aos países pobres e mais fracos. O relacionamento internacional não pode ficar à mercê de “mecanismos que não se podem deixar de qualificar como perversos” (nº 17). Deles resultam a crise de habitação, o desemprego, o subemprego, a dívida internacional.

Entram como ingredientes nessa difícil situação os princípios do capitalismo liberal e do coletivismo marxista. Perante ambos, “a Doutrina Social da Igreja adota uma atitude crítica” (nº 21).

Neste quadro, o documento enfoca aspectos positivos nos nossos dias, como a maior preocupação com os direitos humanos, com a preservação da paz que “exige, cada vez mais, o respeito rigoroso da justiça” (nº 26) e com a ecologia.

A lição que se aprende diante desses problemas que nos afligem é que “a mera acumulação de bens e serviços, mesmo em benefício da maioria, não basta para realizar a felicidade humana (...) o mal não consiste no “ter” enquanto tal, mas no fato de se possuir, sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possui” (nº 28).

Há um fundamento ético, sem o qual ricos e pobres não conseguem um desenvolvimento autêntico, humano. Este, porém, só é válido, verdadeiro se inclui uma dimensão transcendental: “Deve fundar-se no amor de Deus e do próximo” (nº 33).

Assim, todo o Capítulo V é: “Uma leitura teológica dos problemas modernos”.

A Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis” propõe indicações práticas, muito úteis ao momento que vivemos no Brasil. E o Capítulo VI: “Algumas orientações particulares”.

Lendo essa encíclica, causa viva impressão a insistência sobre a supremacia dos valores religiosos, na solução das injustiças sociais. João Paulo II tratava da matéria como Pastor. Ele dizia: “O obstáculo principal a superar para uma verdadeira libertação é o pecado, corroborado pelas estruturas que ele suscita, à medida que se multiplica e se expande” (nº 46).

Uma mesma palavra percorre todo o documento, explícita ou implicitamente: solidariedade. O Papa proclama ser ela” indubitavelmente, uma virtude cristã” (nº 40). E entre as admiráveis testemunhas, recorda São Pedro Claver, que se pôs ao serviço dos escravos, em Cartagena, Colômbia.

Finalmente, concluiu: “Neste Ano Mariano (...) desejo confiar-lhe, a Ela e à sua intercessão, a difícil conjuntura do mundo contemporâneo, os esforços que se fazem e se farão, muitas vezes à custa de grandes sofrimentos, desejando contribuir para o verdadeiro desenvolvimento dos povos” (nº 49).