Constituições e incoerências
A coerência entre a Fé cristã e a vida privada e pública dos que a professam, é fundamental para o indivíduo e a sociedade.
Entre os fatores que enfraquecem a credibilidade nos ensinamentos da Igreja se enfileira, em primeira linha, o exemplo do católico que pratica atos em desacordo com as normas emanadas pelo Salvador e transmitidas pelo Magistério eclesiástico.
Quando, através do jornal, do rádio e televisão, se toma conhecimento de episódios escabrosos de toda espécie, vem à memória a discrepância dessas ocorrências com a moral cristã. A quase totalidade dos que cometem esses desvios receberam o batismo. São pessoas incorporadas ao rebanho de Cristo que assim agem contra as lições do Mestre. Ao contrário, a coerência entre a atuação de um membro da comunidade eclesial e a doutrina de Jesus constitui a melhor e mais eficaz pregação do Evangelho.
Desejo, aqui, ao fazer essas considerações, divulgar um trecho de um escrito que se intitula “Carta a Diogneto”. Descreve o modo de agir dos seguidores de Jesus, na sociedade e no lar. O autor é desconhecido. Alguns historiadores querem identificar o ilustre apolologeta com Kodratos que, pelo ano 125 de nossa era, dirigiu uma apologia ao Imperador romano Adriano, cujo texto está desaparecido. Kodratos era de Atenas, discípulo dos Apóstolos, como Inácio de Antioquia e Policarpo. Não se sabe que tenha tido uma sede episcopal como estes outros. Contudo, ele reúne os cristãos em Atenas, após uma perseguição. Essa epístola surgiu, o mais tardar, antes do fim do século III.
A Igreja não só transmite a doutrina dos Apóstolos, mas confronta-a com um ambiente adverso, como o mundo de então. Essa ingente aventura evangelizadora perdura até nossos dias e só terminará no final dos tempos.
A “Carta a Diogneto” é um testemunho singular de uma Fé profunda, clima espiritual e admirável autoconsciência cristã. A influência de São João e de São Paulo é evidente. O escritor é dotado de notável erudição, possui apurado estilo literário, a elegância e a arte retórica dos gregos.
O ilustre destinatário a que se dirige procura saber quem é o Deus dos cristãos, o que é o amor ao próximo e o porquê do surgimento tão tardio do Cristianismo na História no mundo (cap. I). E o autor responde (cap. II a IV), demonstrando como o culto pagão e o do Antigo Testamento são inadequados e incomparavelmente inferiores ao do Novo Testamento. Nos capítulos V e VI, segue-se a descrição da vida sobrenatural dos cristãos, que são “a alma do mundo”. Os capítulos VII e VIII oferecem profundas reflexões sobre o “Logos” como revelação da essência divina. O fato de ter vindo somente agora o Redentor insere-se dentro da pedagogia do Senhor, segundo a qual o homem deve tomar consciência de sua incapacidade de se salvar sozinho. Os capítulos XI e XII são provavelmente posteriores e de outro autor.
O que nos interessa hoje é o comportamento das pessoas que seguem os ensinamentos do Mestre, como viviam os primeiros cristãos, a nítida coerência entre a Fé e os atos praticados pelos fiéis. A liturgia das Horas (Breviário), na quarta-feira da quinta semana pascal, inclui um trecho dessa obra e aqui transcrevo alguns períodos elucidativos do assunto que me proponho a abordar hoje. Ei-los, extraídos do capítulo V e VI: “Vivem em cidades gregas ou bárbaras (...) e seguem os costumes da terra, (...) mas a sua maneira de viver é sempre admirável (...). Casam-se como toda gente e criam seus filhos, mas não se desfazem dos recém-gerados. Participam da mesma mesa, mas não do mesmo leito. São de carne, mas não vivem segundo a carne (...). Obedecem as leis estabelecidas mas, pelo seu modo de vida, superam as leis. Amam toda gente e toda gente os persegue (...). Conduzem-nos à morte, mas o número dos cristãos cresce continuamente. São pobres e enriquecem os outros; tudo lhes falta e tudo lhes sobra. São desprezados mas no desprezo encontram sua glória (...). Numa palavra: os cristãos são, no mundo, o que a alma é no corpo (...)”.
Essa amostra da descrição, pela profundidade de conceitos e beleza de estilo, revela a existência, em meio ao Império Romano, de uma força espiritual extraordinária. Ainda vivos, os Apóstolos já haviam penetrado no coração do Império: “Todos os santos vos saúdam, especialmente os da casa do imperador” (Fl 4,22).
Fiéis cidadãos sobreviveram à derrocada do paganismo. Ainda hoje, entre luzes e sombras, a luta pela coerência continua. E o Concílio Ecumênico Vaticano II exatamente ensina o retorno a estas fontes como um meio de revigorar a difusão do Cristianismo no mundo contemporâneo.
Tendo diante de nós esse trecho da epístola a Diogneto, que mostra, com fidelidade, a vida dos cristãos, consideremos o que presenciamos em nosso meio.
No Brasil, hoje, existe uma chaga que nos envergonha como, há mais de um século, a escravidão. Refiro-me ao abismo entre alguns que recebem ricos salários e a grande maioria, que sofre na pobreza ou na miséria.
E que dizer da violência, dos crimes, da corrupção na vida pública? Das drogas, do jogo, da luta entre facções de marginais?
Cada um continue esse triste elenco de males que nos afligem. Ele é excessivamente longo. São batizados que negam, por atos, seu batismo.
A “Carta a Diognetto” nos aponta algo que está verdadeiramente na raiz das nossas enfermidades morais, espirituais e sociais: a contradição da vida privada e social com a Doutrina de Cristo. E nos incita a superar a ambiguidade. No momento em que houver coerência de nossa atitude com a Fé que professamos, teremos uma Pátria próspera e tranquila.