Pensamentos para a Quaresma
Iniciamos com a quarta-feira de cinzas mais um ciclo litúrgico, a Quaresma. Ela nos oferece ainda excelente oportunidade para tratar de um assunto cada vez mais ofensivo à mentalidade e sensibilidade reinantes, inclusive de cristãos.
Respira-se uma atmosfera na qual o direito à satisfação dos sentidos é afirmado como algo supremo e indiscutível, acima de qualquer limitação. Dentro dessa visão errônea, tudo o que se lhe opõe é proscrito. No entanto, há um “direito ao prazer”, dentro de uma conceituação correta. Não como um ídolo ao qual tudo se submete, mas como meio de preservar uma finalidade de vida individual e coletiva.
Vejamos esse assunto sob o ângulo natural, independentemente da crença religiosa.
Toda criatura busca a perfeição, uma harmonia a ser construída. Essa tarefa, ao ser posta de lado por algum motivo, gera tensão e desordem. Assim, o instinto foi dado ao homem como força protetora para salvar a si mesmo e fazer sobreviver a coletividade. No primeiro caso, ele é espicaçado pela vontade de reter e usufruir bens materiais. Então, pela falta de auto-controle e desprezo dos valores que devem alicerçar a conduta, surgem as mais variadas deformações. Quem quer possuir dificilmente se dá conta que pesa sobre o que ele acumulou uma grave “hipoteca social”. O egoísmo ofusca-o. Ele não vê as necessidades dos irmãos. Naturalmente reage à penitência que exige uma justa distribuição. A consciência de que nada nos pertence de maneira absoluta mostra outra realidade: os que vivem em penúria, passam privações, os doentes, os sem-emprego, os acabrunhados pelo luto. Nos hospitais e nas prisões, em muitos lares, em locais de trabalho há pessoas sofredoras. Na rua, irmãos sem amigos nem compreensão, sem saber como enfrentar o dia de amanhã. Somente pelo esforço contra as tendências deformadoras alcançaremos a harmonia interior e social.
O mesmo ocorre com o instinto sexual. Ele é destinado a perpetuar a vida na terra. Como a espécie é mais importante que o indivíduo, é extraordinariamente forte. Mas, sob o império do prazer, termina por divinizá-lo. Em consequência, sacrifica-se a existência do outro ser, no aborto, no adultério e no estupro.
Mesmo para quem não participa de nossa Fé, a penitência quaresmal é de grande valia. Combate o amor próprio que desintegra, prejudica e degrada o homem. Ao resistir à força cega dos impulsos, ele redescobre uma liberdade que o eleva como pessoa humana.
A necessidade de ascese torna-se mais clara quando é vista na perspectiva da doutrina cristã.
Recordo que, com data de 17 de fevereiro de 1966, o Papa Paulo VI publicou a Constituição Apostólica “Penitemini”, que assim começa: “Fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc 1,15) (...) Entre os graves e urgentes problemas que se apresentam à nossa solicitude pastoral não nos parece ser o último o de lembrarmos aos nossos filhos – e a todos os homens religiosos de nosso tempo – o significado e a importância do preceito divino da penitência”.
Um dos maiores desvios que ofendem gravemente a face do Senhor, na Igreja de nossos dias, é a fuga às exigências da Fé. Deturpa a mensagem de Cristo aquele que busca acomodar-se à mentalidade do mundo. Assim cria uma outra instituição, da qual exclui tudo o que representa renúncia, restrição; substitui a dureza da Cruz salvadora pelas facilidades proporcionadas por falsos ensinamentos. Faz-se mister clamar a plenos pulmões que os deveres do catolicismo não foram abolidos: a missa dominical, a confissão auricular, os mandamentos da lei de Deus e assim por diante. Esta situação dúbia, proveniente de pregadores e professores acobertados sob o título de “católicos”, vem danificando a vida religiosa.
O Papa João Paulo II, em outra Carta Apostólica, a “Savifici Doloris”, “sobre o sentido cristão do sofrimento”, nos ensinava: “As Testemunhas da Cruz e da Ressurreição de Cristo transmitiram à Igreja e à Humanidade um Evangelho específico do sofrimento” (nº25). Repetidas vezes, o Mestre nos adverte que as tribulações, em decorrência da fidelidade a Ele, diante da necessidade de coibir a concupiscência, ao mesmo tempo “contêm em si o chamamento especial à coragem, à fortaleza, apoiado pela eloquência da Ressurreição” (Idem).
O Apóstolo Paulo nos admoesta: “Todos aqueles que querem viver piedosamente em Jesus Cristo, serão perseguidos” (2Tm 3,12).
O tempo da Quaresma nos alerta para o valor da ascese, “o primado dos valores religiosos e sobrenaturais da penitência” (“Penitemini”, nº23). O convite à conversão, próprio desta época do ano litúrgico, deve ser acompanhado “pelo exercício voluntário de ações exteriores de penitência (...), afora as renúncias impostas pelo peso da vida cotidiana” (Idem, nº27). Este documento “indica, na tríade tradicional – oração, jejum e esmola – os modos fundamentais para obedecer ao preceito divino da penitência” (Ibidem, nº30).
É nesse sentido que O Papa Bento XVI, em sua mensagem para a Quaresma deste ano nos exorta a “contemplar o Mistério da Cruz... para realizar uma conversão profunda da nossa vida: deixar-se transformar pela ação do Espírito Santo...; orientar com decisão nossa existência segundo a vontade de Deus; libertar-nos do nosso egoísmo,... abrindo-nos à caridade de Cristo”.
O cristão, durante todo o ano, especialmente na Quaresma, descobre a verdadeira dimensão dos valores temporais e o faz pela penitência.