Reflexão interior

20/08/2010 22:57

 

Passados muitos séculos, ainda impressionam a lucidez e perenidade de certas obras, reveladoras do brilho da inteligência humana. Testemunha dos estertores do Império Romano, com a decadência e dissolução de um colosso que dominava o mundo então conhecido, Santo Agostinho escreveu o seu célebre livro “A Cidade de Deus”. Em meio aos atropelos daquele momento histórico, lança aos contemporâneos – válido ainda para os nossos dias – um dos mais profundos apelos à conversão. Ele o faz, vendo o esboroar-se de uma estrutura que parecia inamovível: o final de uma era, uma civilização. Roma pagã se fragmentava e morria. Contudo, a religião cristã, apesar de todos os percalços, consolidava sua unidade. Dois destinos bem diversos.

Encontramos semelhanças entre aquele tempo e a nossa época. Hoje se percebe o estremecimento dos alicerces da sociedade civil e, igualmente, no campo eclesial, sinais inquietantes. Neste caso, acresce um fator inexistente ou menos atuante no contexto examinado pelo bispo de Hipona. Importa seja tomado em consideração para a indispensável busca de remédios às dificuldades e fortalecimento da esperança, que sempre acompanha cada fiel.

O Vaticano II projetou uma nova luz que leva à inserção da Igreja no temporal, embora preservando sua identidade própria e objetivos específicos. Esse vínculo e mesmo solidariedade estão expressos em um dos documentos mais importantes do Concílio, a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” sobre a “Igreja no mundo de hoje”. Logo no início, no nº 1, está resumido o conteúdo: “A comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua História”.

Para levar o bom fermento, o cristão é introduzido no âmago da problemática hodierna. A miséria, a solidão e a violência são palavras-chave em nossos dias. Ocorrem, entram na comunidade religiosa, trazendo consigo divisões e rupturas.

Creio, vivemos um período tão dramático como o que ensejou a célebre obra de Santo Agostinho, “A Cidade de Deus”.

Senão vejamos: os valores religiosos são constantemente minimizados por um secularismo que lhe retira as características essenciais. Foi substituída, aqui e ali, a função primordial de converter os homens para levá-los a Deus, por uma outra: fazer que as criaturas se realizem plenamente nesta vida. O pecado é posto de lado. Sua existência é reduzida, atenuada. Ou é assinalado apenas quando tem conotação social. Na verdade, este aspecto, descurado no passado, só é autêntico quando deriva de uma infração à ordem divina. Caso contrário, ocorrerá uma troca do espiritual pelo temporal, embora sob roupagem religiosa.

Miasmas de dissolução, revoltas tentam penetrar no próprio santuário. A influência de correntes filosóficas contrastantes com o evangelho interfere na elaboração de ensinamentos teológicos. Surgem, assim, os que ferem e contradizem o conceito de unidade, preconizado e exigido pelo Bom Pastor. O respeito à liberdade e à dignidade humana acobertam a rebeldia e tentam justificar a mudança de diretrizes do Papa pelo juízo próprio, mentalidade ou gosto de cada um ou de grupos.

O que sucede fora é conduzido ao interior pela inserção oportuna, mas desorientada. A convulsão do mundo moderno busca transpor os umbrais sagrados. Esse, um fator novo que não existia, ao menos na intensidade atual, no tempo de Santo Agostinho. Havia fiéis, pagãos e também apóstatas, hereges. Os defensores da fé lutavam denodadamente contra os desvios. Hoje, doutrinas com conteúdo inautêntico, mas usando o nome católico, são propagadas como legítimas e corretas. As vozes que se levantam para desmascarar o erro não são suficientemente ouvidas.

Uma das consequências é a negação dos valores morais tradicionais. A norma da consciência passa de preceitos objetivos – válidos ainda hoje, por serem eternos – para a área da subjetividade. Na satisfação dos instintos, desaparecem os limites, anula-se o proibido ou vedado, em nome do direito de todos.

O futuro da humanidade depende, em parte considerável, da eficácia da missão de paz e renovação espiritual exercida pela obra de Cristo. Contudo, esse papel está condicionado à união interna, de onde promana a força. A fraqueza se origina da divisão. Esse quadro de nossos dias, em nossa sociedade, merece uma séria reflexão. Ela propicia a oportunidade de conversão, preparando-nos para um profundo sentido de mudança interior que preserva a vitalidade da boa semente. E faz germinar na terra até então sáfara, conseguindo o saneamento do ambiente carregado até então de miasmas.

Para o cristão, qualquer problema, em vez de o abater, constitui um desafio a provar o valor de sua fé na Providência divina. Por isso, sorri, em meio às dificuldades. A alegria interior é uma característica do seguidor do Mestre, pois sabe que o Senhor governa Sua Igreja. Desse modo, entregamo-nos à certeza de que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (“Gaudium et Spes”, nº 1).