Um homem de Deus, por Dom Orani Tempesta

19/07/2012 10:45

Um homem de Deus
13/07/2012
Dom Orani João Tempesta - Arcebispo Metropolitano


Voltou para a casa do Pai o homem que lutou e conseguiu construir um mundo mais justo e humano e que amou a Igreja até fim de seus dias, Dom Eugenio de Araujo Cardeal Sales. Como bem indica a etimologia grega: Eugenios, “bem nascido, nobre”. Sim, em toda a sua vida foi nobre entre os pequenos; sempre tratou a todos com leveza espiritual. Sua nobreza e pobreza estava contida em sua leveza espiritual. Nasceu na Fazenda Catuana (Acari, RN), em 08 de novembro de 1920. Era bisneto de Cândida Mercês da Conceição, uma das fundadoras do Apostolado da Oração na cidade de Acari. Esse contato com a natureza o iluminou em seus trabalhos sociais inicias como a criação de sindicatos rurais, fundação do movimento de educação de base e alfabetização pelo rádio, início das Comunidades Eclesiais de Base, início da Campanha da Fraternidade.

Realizou seus primeiros estudos em Natal, inicialmente em uma escola particular, depois no Colégio Marista e, finalmente, ingressou, em 1931, no Seminário Menor. Realizou seus estudos de Filosofia e Teologia no Seminário da Prainha, em Fortaleza, Ceará, no período de 1931 a 1943. Essa experiência o marcou profundamente. Quando se tratou de acolher seminaristas de outras Dioceses no Rio de Janeiro, ele o fez com muita alegria, visto a sua experiência em sua formação. A abertura para o outro, não vendo no outro nenhum forasteiro, mas membro do povo de Deus, irmão nosso, faz muita diferença em nossa missão de Igreja e em nossa caminhada pastoral.

Dom Eugenio foi ordenado sacerdorte pela imposição das mãos de Dom Marcolino Esmeraldo de Sousa Dantas, bispo de Natal, no dia 21 de novembro de 1943, na mesma Igreja onde recebera o batismo, na Paróquia Nossa Senhora da Guia, em Acari. Foi ordenado bispo no dia 15 de agosto de 1954, para a Arquidiocese de Natal. E no dia 29 de outubro de 1968, se deu sua nomeação como Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, pelo Papa Paulo VI. Seus trabalhos pastorais e sociais no Nordeste foram inúmeros. O filho do Rio Grande do Norter, Primaz do Brasil, Cardeal da Santa Igreja, depois se tornou o Arcebispo da ex-Capital da República do Brasil.

No consistório do dia 28 de abril de 1969, presidido pelo Papa Paulo VI, Dom Eugenio de Araujo Sales foi criado Cardeal da Santa Igreja Romana, do título de São Gregório VII, do qual tomou posse solenemente no dia 30 de abril do mesmo ano. Era, até sua morte, o Cardeal mais antigo do Colégio Cardinalício.

Trazia como lema de ordenação: “Impendam et Superimpendar”. Alusão à frase de São Paulo (2 Cor.12, 15): Ego autem libentissime impendam et superimpendar ipse pro animabus vestris. Quanto a mim, de bom grado despenderei, e me despenderei todo inteiro, em vosso favor.

No dia 13 de março de 1971, o Papa Paulo VI o transferiu da Sé Primacial e o nomeou Arcebispo do Rio de Janeiro, função exercida até 25 de julho de 2001, pois aos 75 anos já tinha pedido a renúncia, conforme o grau de idade em conformidade com as normas do Direito Canônico, mas permanecendo até aos 80 anos no cargo de Arcebispo até que o seu pedido fosse aceito pelo Papa João Paulo II, depois de mais de trinta anos que marcaram profundamente a Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Muitos lembram de quando fora Arcebispo de Salvador, BA, quando unido a uma equipe deu início às CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) bem como à Campanha da Fraternidade (a CF iniciada em Natal, RN). O que não dizer então sobre o Diaconato Permanente: dom Eugenio foi um dos primeiros bispos do Brasil a implantar este ministério. Ordenos mais de 200 sacerdotes e foi o sagrante principal de mais de 20 Bispos. Ao mesmo tempo em que dedicava sua vida na Arquidiocese, ainda acumulava o acompamanhamento em onze Congregações na Santa Sé, entre Conselhos e Comissões. Um grande representante brasileiro junto ao governo central da Igreja.

Foi um grande defensor da doutrina católica demonstrando que, seguindo a verdadeira doutrina, poderia ser muito bem um grande evangelizador, missionário, catequista e também um grande combatente pelo social e pela dignidade humana. Este seu trabalho que não foi reconhecido na época devido à tendência que havia na comunicação, foi redescoberto mais tarde através de tantos testemunhos que pouco a pouco foram aparecendo. Chegou a ser chamado de “bispo vermelho” por ter ajudado a criar sindicatos rurais no Rio Grande do Norte e também quando durante o totalitarismo militar, entre 1976 a 1982, ele mesmo escondeu, guardou e cuidou de quatro mil homens, naquele período da revolução, na maioria argentinos. Ele mesmo assumiu discretamente a causa daqueles refugiados políticos latino-americanos. Articulou uma ação com a Cáritas e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados onde de início abrigou estes refugiados no Palácio São Joaquim (Palácio Episcopal), porém, mais tarde usou de apartamentos para esconder todos estes refugiados. Para a maioria conseguiu asilo político em países europeus. Enquanto lutava pelo asilo político, era ele que corria atrás da sustentação e manutenção de todos. Para conseguir o asilo político enfrentou muitas dificuldades e embates com as autoridades da época, nem sempre visibilizadas ou noticiadas pela comunicação. Mas sua autoridade dobrava a encruzilhada da história naquele momento. Sua leveza fazia com que portas se abrissem, mesmo que as dobradiças estivessem se mostrando “enferrujadas”. O marechal Castelo Branco chegou a definí-lo como o bispo mais perigoso do Brasil.

Ele não temia os poderes da época, a ponto de um dia telefonar para o General Silvio Frota e lhe dizer: “"Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que eu estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final". Sem contar quanta repercussão e perseguição sofreu quando se negou a celebrar uma missa pelo aniversário do AI5.

Muito se destacou na vida pastoral da Igreja Católica, incluindo a criação de centros de atendimento a portadores do HIV. Teve forte empenho na formação de líderes que atuaram na pastoral carcerária, pastoral das favelas, pastoral do menor.

Em 1997, conforme o Direito Canônico, já completados seus 75 anos, pediu ao Vaticano a renúncia da Arquidiocese, mas ficou no cargo até completar os 80 anos. Por isso no dia 25 de julho de 2001, sua renúncia foi finalmente aceita entregando seu báculo (símbolo do pastoreio do Povo de Deus) a Dom Eusébio Oscar Sheid.

Dom Eugenio marcou a história da Igreja no Brasil com seus gestos e ações, mas principalmente com sua exposição sempre corajosa, catequética e profética escrevendo para muitos jornais de grande circulação. Com sua sábia inteligência sabia criar e formar consciências. Teve sempre boa e profissional aproximação com os meios de comunicação social apresentando suas reflexões tanto nas TVs como nas Rádios de inspiração católicas. Um dia numa entrevista a um jornal assim se manifestou: “Eu já estou cansado, às vezes minha memória falha. Mas faço questão de receber os jornalistas. Nada no mundo funciona sem a comunicação. Ela é fundamental para difusão do Evangelho. Eu levei isso muito a sério na minha vida religiosa, instalei rádios, escrevi em jornais, dei muitas entrevistas para TV. Quando eu não podia ir ao local, eu chegava às pessoas pelos meios de comunicação”.

A notícia de sua morte, ocorrida 22h30min do dia 09 de julho causou repercussão internacional – era o mais antigo Cardeal do Colégio Cardinalício. O Papa Bento XVI assim se manifestou ao povo brasileiro enviando um comunicado ao Arcebispo do Rio de Janeiro: “recebida a triste notícia do falecimento do venerado cardeal Eugenio de Araujo Sales, depois de uma longa vida de dedicação à Igreja no Brasil, venho exprimir meus pêsames a si e aos bispos auxiliares, ao clero e comunidades religiosas, e aos fiéis da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, que por três décadas teve nele um intrépido pastor, revelando-se autêntica testemunha do evangelho no meio do seu povo. Dou graças ao Senhor por ter dado à Igreja tão generoso pastor que, nos seus quase 70 anos de sacerdócio e 58 de episcopado, procurou apontar a todos a senda da verdade na caridade e do serviço à comunidade, em permanente atenção pelos mais desfavorecidos, na fidelidade ao seu lema episcopal: “impendam et superimpendar” (gastarei e gastar-me-ei por inteiro por vós). Enquanto elevo fervorosas preces para que Deus acolha na sua felicidade eterna este seu servo bom e fiel, envio a essa comunidade arquidiocesana, que lamenta perda dessa admirada figura, à Igreja no Brasil, que nele sempre teve um seguro ponto de referência e de fidelidade à Sé Apostólica, e a quantos tomam parte nos sufrágios animados pela esperança da ressurreição, uma confortadora bênção apostólica”.

Todos sabem que a missão dos Cardeais é de serem conselheiros dos Papas. Dom Eugenio além dessa missão nutria amizade com os Sumos Pontífices João Paulo II e Bento XVI. Acolheu o Papa João Paulo II por duas vezes em sua visita ao Brasil. E uma terceira quando de sua escala técnica quando viajava para a Argentina para uma visita aquela nação.

Um Cardeal deve sempre colaborar com o Papa na construção de um diálogo com a humanidade. O Cardeal é consultor de um Papa. Por isso a Igreja Católica, com leveza institucional, continua sempre crescendo e mostrando sua força, pois é feita de homens e mulheres que na sua riqueza e fraqueza, reconhece suas crises e encruzilhadas, e realiza a vontade de Deus sempre, com sabedoria, ultrapassando fronteiras.

Dom Eugenio tinha sempre estreita amizade e confiabilidade com os Papas que passaram por sua vida, desde Paulo VI até Bento XVI. Muito bem lembrei ao comunicar sua morte, primeiro por torpedos aos colaboradores mais próximos por volta das 23h30min e depois através do twitter às 0h40min da madrugada do dia seguinte, quando afirmei que Dom Eugenio foi um homem marcante na história da Igreja Católica no Brasil junto aos refugiados e sofredores. Foi também desta forma que ele serviu a Jesus Cristo.

Dom Eugenio foi, é e sempre será a referência da amada Igreja do Rio de Janeiro. Coube a ele, numa carta fraternal, pedir ao Soberano Pontífice Bento XVI, que a sua amada cidade do Rio de Janeiro, fosse escolhida para a JMJ Rio2013. E a sua carta ecoou em Madrid, quando o Papa Bento XVI, anunciou e confirmou a cidade do Rio, como sede da JMJ 2013. Pequenos gestos como estes demonstram que Dom Eugenio é o nosso patriarca: aquele que nos conduziu sempre para os caminhos de Deus, sempre fiel à Igreja e ao Papa.

Antes de surgir a vocação ao sacerdócio, Dom Eugenio pensava em ser engenheiro agrônomo. Coincidência ou não, acabou sendo um grande engenheiro nas obras do Reino de Deus. A pomba que acompanhou o seu féretro recorda de um lado a sua preocupação com a vida rural, com a natureza, onde inclusive ele residiu, no Sumaré, em plena Floresta da Tijuca, e depois a sua procura pela verdadeira paz. Ele edificou consciências e pessoas que continuaram o exercício de apresentar os sinais do Reino de Deus. Homem destacado, amado e nem sempre compreendido, mas preferido por Deus, porque Deus o preferiu. Grande empreendedor na Arquidiocese do Rio de Janeiro e hoje um intercessor de todos católicos do Brasil lá no céu. Como ele mesmo disse em seu testamento: “No céu, onde espero ser acolhido por meu Pai, o Senhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo o que recebi”.